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Nuno Cobra Jr

Será que você está consumindo o "fast-food do treinamento" sem saber?

Nuno Cobra Jr.

22/01/2020 04h00

Crédito: iStock

Quando se trata de alimentação, praticamente todas as pessoas sabem identificar se estão consumindo fast-food e quais os prejuízos disso. Mas e quando o assunto é atividade física? Será que você não está consumindo sem saber o "fast-training", que, a exemplo do fast-food,  pode ser igualmente nocivo à sua saúde e integridade corporal.

A questão é delicada e hoje vou revelar uma história muito esclarecedora, algo que boa parte dos treinadores físicos já sabe, mas que não pode vir a público. Quando converso com grandes estudiosos do treinamento, eles são extremamente críticos em relação às principais modas do treinamento. Pois é, a ética profissional tem um efeito colateral adverso: ela pode acobertar e proteger as fórmulas instantâneas e milagrosas de treinamento, uma vez que os profissionais mais experientes e influentes não podem criticar o próprio mercado e alguns métodos escolhidos para representá-lo.

Essa "lei do silencio" favorece uma distorção que prejudica imensamente toda a população. Quem tem disposição para ir contra o mercado e, ainda por cima, ser taxado de antiético?

Vamos por partes, primeiro, você sabe o que é o "fast-training"?

Como já falei, o "fast-training" se assemelha ao conceito de fast-food, só que aplicado ao treinamento. Traduzindo: o treinamento foi empacotado e formatado dentro de uma lógica comercial e vendável de curto prazo. Quem consome fast-food ingere um alimento vazio, sem qualidade e artificial. Da mesma forma, quem pratica o "fast-training" faz um treinamento esvaziado de sentido, sem qualidade e artificial. O princípio é exatamente o mesmo. Ambos podem ser são danosos à saúde.

Por que o "fast-training" é esvaziado de sentido? Porque ele é utilitarista, o exercício é visto como um mal necessário, uma pílula ruim que deve ser engolida para ter saúde, emagrecer e ganhar músculos –isso, por si só, é um dos principais fatores a dificultar a adesão do aluno. Por que ele é sem qualidade? Porque é um treinamento cosmético (o foco é a estética). E, finalmente, por que é artificial? Porque vai contra as leis da natureza. Tudo na natureza segue um processo gradativo ligado ao equilíbrio, a moderação e à homeostase.

Estrategicamente, o corpo foi transformado em um bem de consumo, uma "roupa", que usamos como forma de aumentar o poder de sedução e o status social.

O "fast-training" não é indicado para mais de 90% da população, somando os sedentários, obesos, idosos, alunos com sobrepeso, alunos sem regularidade e alunos sem adaptação a esse modelo radical.

Como chegamos ao ponto em que estamos hoje? O treinamento físico é o único lugar, no universo conhecido, a negar a lei da moderação. No dicionário, a palavra moderação tem como significados: na medida exata, sem exagero. É incrível que, em pleno século 21, eu tenha que vir a público resgatar uma das sabedorias mais antigas da humanidade. Quando um professor de educação física afirma que a medida exata não funciona, ele está dando um tiro no pé, está assumindo que optou por abandonar ou se esqueceu de alguns princípios fundamentais do treinamento físico. Esse é o resultado de mais de três décadas de domínio da indústria do fitness, uma metodologia fundamentada no lobby do bodybuilding (culto ao fortalecimento muscular) e nos treinamentos da moda, em que o exagero é o correto e todo o resto fica sem validade. O que justifica esse totalitarismo e exagero? Acelerar os resultados? Que resultados são esses? Apenas estéticos? A que custo? Vale acelerar o envelhecimento corporal, destruir suas articulações e cartilagens, entre dezenas de outras contraindicações, para se atingir esse fim?

Quando o treinamento mira na estética, a tendência é distorcer os princípios fundamentais da saúde corporal

Na verdade, não existe apenas uma maneira de treinar, existem várias maneiras para se atingir o mesmo resultado. Se pudéssemos reunir os 100 melhores treinadores do mundo, veríamos que cada um aplica uma fórmula diferente e, mesmo assim, chegam a resultados parecidos. Todos os métodos têm vantagens e desvantagens. Porém, quanto mais radical for um método, mais efeitos colaterais ele poderá provocar.

Precisamos respeitar a individualidade biológica de cada um. Algumas pessoas adoram ir à academia, outras odeiam e não se adaptam a esse modelo, por mais que insistam, e tudo bem, somos únicos e diferenciados. Entender isso é a chave para combater o sedentarismo e a obesidade. Dessa forma, as modas e a massificação prejudicam a individualização, a adesão e a adaptação ao treinamento físico.

Porém, a responsabilidade não é apenas do mercado, essa herança é cultural, estrutural e histórica, o mercado apenas segue e reafirma a principal vertente do treinamento, o modo mais arcaico (é assim há 5 mil anos), o "Sem Dor, Sem Ganho" (No pain, No Gain) . É o que eu chamo de "a maldição do livre mercado", as abelhas correm para onde está o mel, ou seja, uma parte enorme desse mercado gira em torno de fórmulas instantâneas e milagrosas de emagrecimento e condicionamento físico. As modas do treinamento são escolhidas a dedo, quanto mais sedutoras e comerciais, mais irão vender.

Por que as pessoas são atraídas pelo "fast-training"?

Pesquisando a fundo, encontrei a resposta desse enigma no relatório das estatísticas da IHRSA (International Health, Racquet & Sportsclub Association), organização que reúne as academias de todo o mundo. Segundo o material, 50% das pessoas abandonam a academia depois de três meses. A pesquisa não mostra a porcentagem dos alunos que abandonam o treinamento após seis meses, mas um item específico é bastante esclarecedor: sabe quais são as principais queixas reportadas pelos alunos nesta pesquisa? Falta de resultados rápidos e monotonia nos exercícios. Bingo! Aí está a explicação para a estratégia de marketing do mercado de fitness. Ou seja, baseada no resultado das pesquisas, o marketing se desdobra para pensar em estratégias que atendam a essa demanda. Agora, quando eu digo que as modas do treinamento, atualmente, têm uma enorme contribuição do diretor de marketing, você acredita?

O que faz um bom consultor: dá aquilo que o aluno pede ou recomenda aquilo que é melhor para o aluno? Em um futuro, não muito distante, um método de treinamento virá acompanhado de uma bula com informações básicas sobre os seus efeitos colaterais, assim como acontece com os medicamentos. Afinal, em médio e longo prazo, um método de treinamento pode ser extremamente negativo a sua saúde –a diferença entre o veneno e o remédio é a dosagem e a intensidade. Por meio de uma pesquisa que durou 12 anos (e virou um livro), exponho essas distorções e contraindicações do modelo hegemônico

O equilíbrio está no meio, não nos extremos. Sem dúvida, quando falamos em saúde no treinamento, a recomendação, assim como na alimentação, deveria ser a seguinte: faça atividade física com moderação e qualidade.

No entanto, infelizmente, essa recomendação não está na moda.

Trata-se aqui do velho paradoxo do ovo e da galinha: as pessoas só pensam em resultados rápidos e ganhos estéticos e é por isso que o mercado fomenta essa busca? Ou é o mercado que fomenta a busca do "corpo perfeito" e, dessa maneira, as pessoas só pensam em barriga chapada e bunda durinha? Como reverter esse círculo vicioso?

Para ser efetiva a atividade física deve ser incorporada a uma rotina, esse é o grande segredo. Caso essa atividade seja prazerosa, lúdica e equilibrada, o desafio será muito mais acessível e convidativo para uma grande parcela da população.

Porém, não é fácil mudar algo que se mantém hegemônico há tanto tempo. Só com a união de todos –academias, professores, mercado, mídias — e com campanhas consistentes poderemos transformar essa cultura.

Detalhe importante: o consumidor detém a chave desse processo, afinal, o mercado só muda se você mudar.

Consciência é liberdade!

Sobre o Autor

Nuno Cobra Júnior é um generalista do conhecimento corporal e acompanhou o treinamento físico e mental de alguns dos maiores esportistas brasileiros nos últimos 35 anos, entre medalhistas olímpicos e diversos campeões mundiais, como Ayrton Senna e o surfista profissional Ítalo Ferreira. Profissional de educação física, palestrante, consultor em qualidade de vida e treinamento integral, tem ajudado a conceitualizar e fomentar uma nova visão do treinamento físico, longe dos modismos e dos modelos hegemônicos de treinamento. O autor do livro “O Músculo da Alma, a Chave para a Sabedoria Corporal” defende a inovação e a renovação do treinamento físico. É fundador de uma nova abordagem metodológica que une a filosofia, a psicologia e diversas áreas do conhecimento corporal, aplicados ao treinamento físico. Veja mais em www.treinamentoconsciente.com.br

Sobre o blog

Aqui, Nuno Cobra Jr. propõe uma pequena revolução: pensar o corpo e o treinamento físico através de um prisma filosófico, integral e multidisciplinar. Ele pretende dar voz e visibilidade ao Movimento Treinamento Consciente, uma resposta à cultura de treinamento baseada na dor e no sofrimento. Esse movimento agrega fisioterapeutas, doutores em educação física, fisiologistas, ortopedistas, cardiologistas e nutricionistas, entre outros. A missão desse espaço é criar uma comunicação entre estes profissionais, expandir o conhecimento e fomentar na população a consciência no cuidado com o corpo.