Topo

Nuno Cobra Jr

O mito do treinamento com sofrimento

Nuno Cobra Jr.

04/03/2020 04h00

Crédito: iStock

Hora de atualizar os slogans do treinamento físico. Para substituir o antigo, criei um slogan muito mais realista e inclusivo: o "No brain, no gain", traduzindo: sem inteligência, sem ganho. Essa é a forma mais utilizada por alguns dos maiores treinadores de atletas no mundo, por meio da qual se busca tirar o máximo do aluno, sem expô-lo ao risco de lesões.

Essa equação só se fecha com estratégias bem pensadas, na medida exata, sem exagero. Um treinamento sob medida, bem planejado e inteligente seria também a fórmula mais adequada para mais de 90% da população, somando os sedentários, obesos, alunos com sobrepeso, idosos, alunos sem regularidade e alunos sem adaptação aos modelos radicais de treinamento.

Caso você seja um "crente do treinamento com sofrimento", a culpa não é sua. Provavelmente, você é apenas uma vítima dos treinamentos da moda ou um convicto adepto do treinamento arcaico, ou treinamento militar, a forma mais popular e antiga de treinamento que se tem notícia. O primeiro registro histórico de um treinamento ocorre com um general chinês treinando seu exército. Pois é, era assim há mais de 5 mil anos e ainda é assim até hoje.

Veja bem, não estou dizendo que esse modelo não funciona, dependendo do seu objetivo –por exemplo, acelerar os resultados ou ganhar músculos no menor tempo possível, mesmo que à custa de uma "destruição" metódica do corpo, no médio e longo prazo. Porém, é bom avisar: a pressa é inimiga daquilo que é bem feito. Toda promessa de acelerar os resultados é também uma promessa de acelerar o desgaste corporal e pular etapas essenciais do treinamento.

Nenhum dos princípios fundamentais do treinamento físico sustentam que a dor e exagero sejam parâmetros válidos ou uma medida correta, para o aluno evoluir de forma segura e sustentável. A lei da supercompensação, um dos princípios mais fundamentais, defende que o aluno deve ser submetido a um leve desconforto, um esforço apenas um pouco acima do seu nível de adaptação, causando um estresse físico adequado, sem exagero, para que a compensação a esse esforço e a sua evolução no treinamento possa ser mais produtiva e bem planejada.

Após 40 anos, chegamos ao esgotamento de uma fórmula. Os ventos estão mudando, o modelo do fitness já caducou, tudo o que você conhece como treinamento irá mudar radicalmente na próxima década.

Treinamentos da moda podem distorcer os princípios fundamentais da saúde corporal

Aqui está a confusão: um treinamento de alta intensidade para um aluno que está sedentário há mais de 10 anos e está mais de 10 kg acima do peso seria algo como caminhar durante 30 minutos, com uma inclinação muito suave na esteira. Ou seja, recomendar uma corrida para esse caso específico seria uma insanidade corporal.

No entanto, devido ao lobby dos treinamentos da moda, atualmente, muitos defendem o exagero como uma medida ideal de treinamento. Na minha opinião, devido à moda do treinamento de alta intensidade, vivemos a era mais obscura da história do treinamento físico, na qual o exagero, a distorção e o desequilíbrio no treinamento assumem o disfarce de uma verdade absoluta e totalitária, resultando em fórmulas de treinamento cosméticas e superficiais.

Diversas pesquisas dão sustentação aos treinamentos da moda, uma vez que esse assunto se torna uma moda também entre os pesquisadores que, então, se debruçam tentando comprovar as vantagens desse modelo. Já vi esse filme antes, como no caso da ginastica aeróbica na década de 1980. Porém, quando essas modas caducam, a tendência se inverte e os pesquisadores começam as pesquisar os efeitos colaterais desses modelos. Junte a isso, o fato dos professores se verem obrigados a aderirem as novas tendências, e você terá um mapa completo desse desastre.

"Mais da metade dos atendimentos em consultório são lesões relacionadas a sobrecarga no treinamento"

Moises Cohen, ortopedista e Presidente da Sociedade Mundial de Trauma Desportivo

Se pudéssemos entender o treinamento de uma forma mais abrangente, adicionando a essa analise o olhar da fisioterapia e da cardiologia, por exemplo, as modas atuais não fariam mais sentido, uma vez que, quanto mais radical for um treinamento, mais radical são os seus efeitos colaterais sobre a saúde corporal.

Na realidade, quanto mais nos aproximamos do espectro da performance, menos saudável é o treinamento. Conheço atletas que aos 30 anos de idade já passaram por mais de uma dezena de cirurgias ortopédicas.  Quase tudo o que o grande público conhece como treinamento físico é uma forma muito específica de se conceber a saúde corporal. Essa visão é contaminada pela herança militar do treinamento e pelo lobby do bodybuilding (o culto ao fortalecimento muscular).

O mito do treinamento com sofrimento

Vamos lá, vou tentar esclarecer, de uma forma didática, o principal mito do treinamento físico. No momento, sou uma pessoa bem capacitada para tal façanha. Há 35 anos, treino alguns dos maiores atletas brasileiros, e, há 16 anos, estou fazendo uma pesquisa abrangente e profunda sobre o tema, o que rendeu o primeiro livro que desconstrói, de forma profunda, esse mito. Para completar, sou herdeiro direto de um grande mestre do treinamento que pesquisa sobre isso, há 65 anos. Nada mal para um país que costuma importar os conceitos sobre treinamento físico, o método Cobra inaugura a filosofia integral do treinamento físico: uma forma mais profunda, integrativa e transdisciplinar de abordar a preparação física.

O desafio aqui, nesse espaço, é resumir algo tão complexo. Vou começar com um caso contundente e real. Durante 11 anos, acompanhei o treinamento de Ayrton Senna, conduzido por meu pai, Nuno Cobra. No treinamento cardiovascular, depois de 5 anos, o Ayrton havia mudado o seu VO2 máximo de 28 ml, no início do processo, para 70 ml (o equivalente a um maratonista profissional), sendo que 90% do seu treino, nesse período, ocorreu em baixa intensidade, com corridas de 60 a 90 minutos, e ele nunca sentiu dor ou sofrimento físico, em qualquer fase do treinamento.

Esse treinamento, que era o segredo mais bem guardado dos grandes treinadores de atletas, foi revelado e esmiuçado, recentemente, por um dos maiores fisiologistas americanos, Stephen Seiler, em um TED talks, veja com calma e entenda a questão, procure por "How "normal peaple" can train like the best endurence athletes".

O que ele descobriu na mais abrangente pesquisa sobre o assunto? Ele comprova que 85% do treinamento desses atletas ocorre em baixa intensidade, o que o levou a afirmar, de forma categórica, que "O sem dor, sem ganho" é um falso conceito. Ele ainda não entendeu a sutileza desse tema, o treinamento com sofrimento agrada e traz resultados, em casos específicos, como no caso dos velocistas, lutadores de artes marciais (artes militares, ou dos adeptos ao fisiculturismo.

Para esses perfis, o "treinamento com dor" é uma promessa sedutora. Faz sentido, para superar recordes insuperáveis de velocidade ou para ter uma musculatura exagerada, é necessário fazer, igualmente, um treinamento muito além do limite e exagerado. O nosso organismo é uma máquina incrível, o ser humano se adapta a tudo, mesmo a uma forma de treinamento onde o aluno chora de dor durante a aula ou, nos dias seguintes, fica acabado e impossibilitado de se movimentar com eficiência, como na fórmula: "esmaga, que cresce".

Qual o meu conselho? Em vez de seguir aquilo que te mandam fazer, sugiro testar e comprovar qual desses modelos serve para você e se adequa ao seu perfil específico. Você se adapta ao "hard way?" (treinamento com sofrimento) ou você prefere o "balance way" (Treinamento com equilíbrio)?

O que você prioriza? A performance, a estética ou a sua saúde? No método Cobra, provamos que é possível unir performance e saúde e ficar no meio desse espectro, isso só pode acontecer por meio do princípio fundamental do treinamento: a moderação. Em sua maioria, os modelos de treinamentos mais comerciais priorizam a estética e menosprezam a saúde, adotando fórmulas instantâneas e milagrosas de desenvolvimento físico.

O treinamento consciente propõe formas equilibradas, sustentáveis e inclusivas de treinamento, nas quais o aluno possa evoluir "step by step", de forma segura e gradativa, sempre respeitando os seus limites e sofisticando a sua consciência corporal. Como diz meu pai: "O corpo é o nosso bem mais precioso, sendo assim, ele merece ser tratado com carinho e respeito".

Sobre o Autor

Nuno Cobra Júnior é um generalista do conhecimento corporal e acompanhou o treinamento físico e mental de alguns dos maiores esportistas brasileiros nos últimos 35 anos, entre medalhistas olímpicos e diversos campeões mundiais, como Ayrton Senna e o surfista profissional Ítalo Ferreira. Profissional de educação física, palestrante, consultor em qualidade de vida e treinamento integral, tem ajudado a conceitualizar e fomentar uma nova visão do treinamento físico, longe dos modismos e dos modelos hegemônicos de treinamento. O autor do livro “O Músculo da Alma, a Chave para a Sabedoria Corporal” defende a inovação e a renovação do treinamento físico. É fundador de uma nova abordagem metodológica que une a filosofia, a psicologia e diversas áreas do conhecimento corporal, aplicados ao treinamento físico. Veja mais em www.treinamentoconsciente.com.br

Sobre o blog

Aqui, Nuno Cobra Jr. propõe uma pequena revolução: pensar o corpo e o treinamento físico através de um prisma filosófico, integral e multidisciplinar. Ele pretende dar voz e visibilidade ao Movimento Treinamento Consciente, uma resposta à cultura de treinamento baseada na dor e no sofrimento. Esse movimento agrega fisioterapeutas, doutores em educação física, fisiologistas, ortopedistas, cardiologistas e nutricionistas, entre outros. A missão desse espaço é criar uma comunicação entre estes profissionais, expandir o conhecimento e fomentar na população a consciência no cuidado com o corpo.