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Nuno Cobra Jr

O novo conceito de vencedor e perdedor

Nuno Cobra Jr.

29/04/2020 04h00

Crédito: iStock

Aqui, nesse artigo, você terá uma surpresa, irá descobrir que o conceito de "loser", isto é, perdedor, e consequentemente, o conceito de vencedor, estavam incompletos. Na verdade, o conceito antigo seria só a primeira parte, ele dá conta apenas do primeiro desafio em nossa sobrevivência: fazer parte do mercado de consumo e garantir os recursos essenciais para a manutenção da vida. Ou seja, a partir do momento em que você venceu na vida e conquistou os recursos básicos à sua sobrevivência, surge o segundo desafio: não ser consumido pelo mercado de consumo.

Nos últimos 18 anos, os estudos sobre a felicidade se tornaram uma febre entre os pesquisadores e, finalmente, a ciência descobriu uma verdade incômoda: você está sendo manipulado pelo marketing do consumo. Resumindo uma longa história, os níveis de felicidade não se alteram a partir do ponto em que você conquista aquilo que é extremamente básico à sua sobrevivência. Traduzindo em números, a partir de, aproximadamente, oito salários mínimos, tudo aquilo que você conquistar, não fará diferença em sua felicidade intrínseca, de fato.

O fator principal que explica o porquê da riqueza não se traduzir em satisfação permanente chama-se "adaptação hedonista". O ser humano tem uma tendência a se adaptar rapidamente a qualquer situação, seja para o bem, seja para o mal. Já percebeu isso?

Por exemplo, se você trabalhar de forma insana e acumular muito dinheiro, você poderá, finalmente, comprar a mansão dos seus sonhos e, realmente, essa sensação pode lhe trazer satisfação por certo período. Porém, rapidamente, você vai se acostumar com essa nova condição e o seu nível de satisfação volta ao patamar anterior. Ou seja, em pouco tempo, parecerá aos seus olhos que você teve uma mansão a vida inteira. Essa é a sensação.

Assim como uma criança que ganha um presente novo, com todos os bens supérfluos que você adquirir, ocorrerá esse mesmo processo: prazer momentâneo e insatisfação permanente. Dessa forma, criar e estimular a insatisfação passa a ser a principal estratégia do mercado de consumo.

Então, voltamos ao segundo desafio da sobrevivência: não ser consumido pelo mercado de consumo e, nesse ponto, gostaria de convidá-lo a ampliar o conceito de perdedor e enxergá-lo sob outro ponto de vista. Nesta versão complementar, ser um "loser" é ser capturado e tapeado pelo marketing do consumo e ter os seus valores, foco e energia vital aprisionados aos bens materiais, como forma de status e sentido de vida. Ser um "loser" é ser escravo de um sistema de trabalho vazio e massacrante, que só visa o lucro e o acúmulo de riqueza. Ser um "loser" é perseguir uma ilusão de felicidade que nunca se realiza, por meio da fama, do dinheiro e do sucesso.

Como você pode perceber, na segunda versão, os valores de ser um vencedor se invertem e, caso você continue seguindo as indicações do primeiro princípio, na realidade, pode se tornar um perdedor. Como isso acontece? Ao abdicar da sua saúde, da sua vida afetiva, dos momentos de lazer e de todo o resto que dá sentido à nossa existência e colocar toda a sua energia em prol do trabalho e dos valores do mercado, você troca uma vida plena e com sentido, ou seja, uma felicidade genuína, por uma felicidade ilusória e fugaz.

Beco sem saída

Por que o mercado de consumo, de forma enganosa, o convence de que você será mais feliz na medida em que consumir mais? Simplesmente, porque, sem esse argumento, dificilmente você iria consumir a enorme quantidade de bens supérfluos e descartáveis que são produzidos atualmente.

Historicamente, essa estratégia se estabeleceu no início do século passado, com o avanço da industrialização. Até então, tudo o que produzíamos era fruto de um modo artesanal de produção e o foco era produzir coisas extremamente úteis e essenciais. Com a explosão do mercado de consumo, na década de 1950, tudo isso muda e, além dos bens de utilidade, o marketing do consumo se desenvolve, o convencendo de que a sua felicidade está associada à compra de bens supérfluos e desnecessários. Essa foi a maneira que o mercado encontrou para crescer e acomodar a sua enorme capacidade de produção, fabricando uma enorme quantidade de coisas desnecessárias.

Agora que chegamos em 2020, podemos perceber onde nos trouxe o desvio de rota que assumimos lá atrás, com a explosão do mercado de consumo e dos bens supérfluos. Todo o nosso ecossistema está entrando em colapso, os mares, as florestas, inclusive o nosso próprio corpo. Todas as doenças avançam em ritmo alucinante, como a obesidade, a depressão, a ansiedade crônica, as doenças cardíacas, o diabetes e tantas outras.

E, aqui, surge uma questão mais grave, aquilo que deveria colaborar em sua saúde, também se transforma em mercados bilionários, sendo submetidos a essas mesmas regras, ou seja, vender métodos descartáveis e supérfluos. Por exemplo, as principais modas de dieta e treinamento são, essencialmente, fórmulas instantâneas e milagrosas, baseadas no curto prazo.

Sendo assim, obviamente, isso as tornam fórmulas mais sedutores e comerciais. Resumindo: atendendo ao pedido do consumidor, que se mostra com pressa, uma enorme parte do mercado de consumo lhe vende coisas que não são eficientes e saudáveis, no médio e longo prazo. Como a ciência já provou, no caso das dietas da moda, na verdade, elas colaboram decisivamente no aumento da obesidade, sendo um dos principais fatores a alimentar esse processo.

Da mesma forma, modelos de treinamento baseados na dor e no sofrimento dificultam a adesão do aluno, defendendo fórmulas instantâneas, superficiais, expulsivas e radicais de treinamento. O foco é ganhar músculos e perder peso, no menor tempo possível, mesmo que à custa de uma destruição metódica do corpo. Ou seja, quanto mais pressa na busca do "corpo perfeito", mais rápido você consome suas articulações e cartilagens.

Dessa forma, o "treinamento cosmético" distorce os princípios fundamentais da saúde corporal, e, principalmente, não estimula que o aluno desenvolva uma relação positiva com a atividade corporal, associada a uma forma de obrigação ou um enorme desconforto físico.

Veja bem, a responsabilidade não é só do mercado, ele apenas está lhe oferecendo aquilo que você lhe pede. Afinal, a pergunta "Como perder peso rápido?" é uma das mais feitas Google, atualmente.

Para complicar ainda mais, inventamos, no início do século passado, o "mercado da remediação". A indústria farmacêutica, um dos maiores nichos do mercado de consumo, o convence de que, em vez de atacar a verdadeira causa dos seus desequilíbrios corporais, você pode tomar um "remedinho" que irá controlar esse processo. Para quem está com pressa, isso é bem pertinente, afinal, em vez de combatar as verdadeiras causas do problema, em sua imensa maioria, associadas aos seus hábitos de vida, ao sono, à alimentação e à atividade física, você consome uma pílula e segue mantendo tudo aquilo que alimentará e continuará sustentando esses desequilíbrios orgânicos. Ou seja, dessa forma, você acaba de ser fidelizado por esse grande lobby do mercado de consumo. As doenças continuarão avançando, porém de uma forma mais lenta, quando perceber, você pode estar em um beco sem saída.

Vida com qualidade 

Finalmente, chegamos ao fim desse pequeno resumo da minha pesquisa de vida e profissional, que já dura 36 anos, e vem desaguar no conceito de vida com qualidade e treinamento integral. Esse conceito representa o futuro dos produtos ligados à nossa saúde e ao mercado do wellness, retornando ao ponto essencial dessa questão: os métodos de cuidado com a saúde devem estimular fórmulas profundas, efetivas e definitivas, priorizando mudanças de hábitos ligadas ao médio e longo prazo.

Esse retorno à simplicidade, àquilo que é, realmente, funcional, útil e essencial, irá encorajar a reavaliarmos a forma como estamos vivendo. Sendo assim, romper com essa ilusão criada pelo mercado do consumo descartável é o primeiro passo para resgatar a sua liberdade e integridade corporal.

Atualmente, diversos movimentos globais estimulam o minimalismo e a desaceleração desses mecanismos perversos gerados pelo consumo descartável, como, por exemplo, o "slow medicine", levando os médicos a defenderem um atendimento mais profundo e humano, que prioriza as mudanças de hábito e não apenas a remediação. O movimento do "slow education", defende que devemos preparar os nossos filhos para a vida, e não apenas para o mercado, e o "slow food", o estimula a comer comida de verdade e reduzir o consumo de alimentos industrializados.

Em 2004, inicie uma pesquisa em busca de integrar o conhecimento corporal e trazer esse movimento minimalista para o treinamento, defendendo o "slow training", uma forma, a princípio, anticomercial de treinamento, simplificando aquilo que parece complicado e defendendo fórmulas mais naturais e orgânicas de desenvolver e cuidar da saúde corporal. O nosso desafio é desfazer uma distorção que levou o mercado a priorizar o treinamento estético e as fórmulas de curto prazo, prejudicando a nossa saúde física e mental, no médio e longo prazo.

O consumo consciente e a desaceleração da vida são dois fatores primordiais nesse processo, sendo também decisivos para o futuro da nossa sobrevivência como espécie.

Desacelerar é preciso! Só a desaceleração dos modos de vida pode quebrar a "coluna vertebral" do aumento da insanidade física e mental no mundo atual.

PS: Esse artigo resume alguns trechos e questões mais profundas colocadas em meu livro: "O músculo da alma, a chave para a sabedoria corporal", os desdobramentos do que apresento aqui são tão abrangentes que não cabem em poucas linhas.

Sobre o Autor

Nuno Cobra Júnior é um generalista do conhecimento corporal e acompanhou o treinamento físico e mental de alguns dos maiores esportistas brasileiros nos últimos 35 anos, entre medalhistas olímpicos e diversos campeões mundiais, como Ayrton Senna e o surfista profissional Ítalo Ferreira. Profissional de educação física, palestrante, consultor em qualidade de vida e treinamento integral, tem ajudado a conceitualizar e fomentar uma nova visão do treinamento físico, longe dos modismos e dos modelos hegemônicos de treinamento. O autor do livro “O Músculo da Alma, a Chave para a Sabedoria Corporal” defende a inovação e a renovação do treinamento físico. É fundador de uma nova abordagem metodológica que une a filosofia, a psicologia e diversas áreas do conhecimento corporal, aplicados ao treinamento físico. Veja mais em www.treinamentoconsciente.com.br

Sobre o blog

Aqui, Nuno Cobra Jr. propõe uma pequena revolução: pensar o corpo e o treinamento físico através de um prisma filosófico, integral e multidisciplinar. Ele pretende dar voz e visibilidade ao Movimento Treinamento Consciente, uma resposta à cultura de treinamento baseada na dor e no sofrimento. Esse movimento agrega fisioterapeutas, doutores em educação física, fisiologistas, ortopedistas, cardiologistas e nutricionistas, entre outros. A missão desse espaço é criar uma comunicação entre estes profissionais, expandir o conhecimento e fomentar na população a consciência no cuidado com o corpo.